A criação do Parque Índigena do Xingu, em 1961, começou a preservação de
um tesouro da humanidade. Mas como ficam os próximos cinquenta anos?
Após 900 quilômetros de viagem em direção a Canarana (MT) atravessando os portais do Brasil profundo, navegamos seis horas de canoa pelo rio Xingu, carregados de suprimentos e mochilas. Nosso destino é a aldeia indígena da tribo Yawalapiti. Vemos o sol se pôr e a lua nascer, emergindo do horizonte com a mesma vermelhidão do sol.
Chegamos cansados, trazendo equipamento e bagagem para a oca onde o respeitado líder político do Alto Xingu, o cacique Aritana, nos recebe. Somos cinco vindos de barco. Além de mim estão os fotógrafos Ueslei Marcelino e Paulo de Araújo e dois membros da Fundação Darcy Ribeiro. Outros membros da expedição já vieram de avião antes de nós e fizeram a diplomacia para a nossa recepção. Viemos registrar o Kuarup, a festa anual em memória dos mortos de grande valor para a aldeia. Neste ano a cerimônia homenageia o antropólogo Darcy Ribeiro (1922–1997) por seu trabalho de preservação da vida e da cultura indígena no Parque Nacional do Xingu. Nossa missão é registrar as preparações para as festividades. Oficialmente, o Kuarup deste ano acontecerá em uma noite de lua cheia de agosto, no ápice da festa, a aldeia unida chora pelos seus mortos e descarrega toda a tristeza para que a alegria volte para suas vidas depois da festa.
Dia de índio Nossa primeira refeição é o clássico arroz com feijão e carne de frango, feita com parte dos suprimentos que nos antecederam. Os índios também desfrutam esses alimentos trazidos pelos visitantes. O dono da oca foi quem nos preparou a refeição. A partir do dia seguinte – ficamos lá três dias, outros dois foram dedicados à viagem –, comeremos o famoso beiju com peixe e diversos pratos à base de mandioca, preparados pelas mulheres. Montamos nossas redes e dormimos protegidos pela escuridão da engenhosa arquitetura da oca indígena. Quando acordo, às cinco da manhã do dia seguinte, já há movimento. Na madrugada anterior, os homens da aldeia fecharam o rio para a pescaria. A fechada do rio começa pela noite, os homens levam redes, cercando o rio para que os peixes não escapem, e preparam tudo para o ritual da pescaria, que começa com o nascer do sol.
Enquanto o sol se prepara para nascer, são levadas as toras de timbó em direção ao rio. O timbó é uma espécie de cipó com uma seiva tóxica capaz de intoxicar os peixes. Alguns peixes parecem mortos. Estão apenas entorpecidos, fáceis de pegar. O efeito desaparece depois de algumas horas, e os peixes que não foram capturados voltam para a liberdade do rio. A pescaria começa com três crianças da aldeia, armadas com arco e flecha. São os primeiros a pescar.
Um dos indiozinhos se chama Macapi, parece ter uns 9 anos. Tem boa mira e é o garoto de personalidade mais agitada da turma. De forma geral, os índios são serenos, tímidos, com poucas exceções. Após as crianças, os adultos entram no rio e terminam o ritual da pesca. Hoje o dia não foi bom, rumores garantem que isso não é bom sinal. Foram pescados menos peixes do que o esperado, as redes não estão cheias.
Muitos yawalapitis falam português com fluência. A maioria das mulheres e crianças domina o nosso idioma, ao menos para escutar com clareza. Já estão familiarizados à nossa cultura desde 1840, quando os primeiros exploradores ousaram enfrentar a mata para desbravá-la.
A troca de mercadorias ainda é um hábito comum. Moitara é o nome da cerimônia. No último dia de permanência, nós da cidade oferecemos nossos objetos em troca das mercadorias locais: colares, esculturas, arcos e flechas, entre outras coisas. Eu ofereci minha lanterna, minha rede, uma calça comprida, uma camiseta, sabão e um travesseiro, já que era meu último dia na aldeia. Trouxe para casa muitos colares, pulseiras e esculturas para presentear as pessoas queridas. Por causa dos inúmeros Moitaras realizados ao longo dos anos, é comum encontrar índios vestidos com bermudas, calças, casacos de lã e até bonés, mas ainda existe uma maioria tradicionalista. Vivem o tempo inteiro nus, exibindo as pinturas corporais feitas à base do óleo do pequi, de urucum e de resinas.
O tempo passa devagar na aldeia. Não há necessidade urgente de mudanças como nas grandes cidades, sempre em desenfreada modernização. Por maior que seja a influência da nossa civilização sobre a deles, ainda são um povo conectado ao aspecto ancestral da vivência humana. Extremamente ligados à natureza, em adoração constante às entidades divinas com danças e trabalho artístico permeando o dia a dia.​​​​​​​
As crianças desfrutam um Éden temporário – na fase adulta a rotina é de muitas obrigações –, correndo soltas em total liberdade. Tomam banho de rio, riem, brincando de saltar de galhos em direção à água, ou como se fossem oncinhas, escondidas atrás da mata sorrateiramente, esperando para assustar os desavisados. Vivem enroscadas com a natureza. Mas a vida não é só brincadeira. Além de todos já pescarem desde pequenos, as meninas ajudam as mães na preparação do beiju e das refeições diárias. A hierarquia é clara. Adultos mandam, crianças obedecem. Não há necessidade de gritos, ou de ordens severas. As crianças vivem livremente, mas respeitam os mais velhos.
 Desde cedo os meninos se preparam para a luta huka-huka, semelhante à luta greco-romana e praticada por outras tribos do Xingu. Os guerreiros encaram-se, e o objetivo é arremessar o adversário com as costas no chão. Algumas técnicas se parecem ao jiu-jítsu. Nossa visita foi precedida pela do famoso lutador Anderson Silva, atual campeão do UFC na categoria peso médio. Lutando sob as regras dos índios, ele não venceu nenhuma disputa.
Na huka-huka, antes da luta, os competidores enfeitam o corpo com urucum e adornos feitos de penas de tucanos. As lutas entre as aldeias ocorrerão daqui a alguns dias, por enquanto os aldeões treinam entre eles. Apesar do clima amigável, a luta é carregada de brutalidade. Já começam arrastando os pés no chão e, com um grito – o som do jaguar –, partem para cima. Quando os ombros se encontram, golpes com as mãos no rosto, nos ombros e nas costelas desestabilizam o oponente. É possível também puxar o inimigo por trás dos joelhos para fazê-lo cair.
Algumas lutas resolvem-se em segundos, mas há casos de combates demoradíssimos, com até quarenta minutos. É preciso força e resistência física, nada que os exercícios diários de busca por alimento para a aldeia não supram. Os campeões têm seus nomes lembrados por várias gerações e são prestigiados. De uns anos para cá, as mulheres começaram a realizar seus próprios campeonatos de huka-huka, com as mesmas regras dos homens. A posição da mulher tem se transformado sensivelmente ao longo dos anos.
Paraíso até quando? 
Em 2011, o Parque Indígena do Xingu completou cinquenta anos. O Xingu foi a primeira terra indígena homologada pelo governo federal. Darcy Ribeiro e os irmãos Villas Bôas foram os principais responsáveis por esse feito, e têm seu nome reconhecido por isso até hoje. No entanto, o parque está ameaçado por fazendeiros que, contra a lei, invadem as cabeceiras dos rios e destroem quilômetros de floresta para criação de gado. Além disso, despejam esgoto, inviabilizando a existência de índios no decorrer do rio. Chegando de carro na beira do rio, para pegar nossos barcos, passamos por grandes extensões em que de um lado, há mata virgem, do outro há devastação, grandes toras de madeira derrubadas, campos abertos, preparados para o gado. O absurdo chega ao ponto das cercas das fazendas serem feitas com madeira nobre.
A preocupação atual do cacique Aritana e dos demais representantes de aldeias são os próximos cinquenta anos. Eles precisam chamar a atenção para si para conscientizar os poderosos a tomarem conta do parque que preserva resquícios ancestrais, um tesouro da humanidade. Duas questões permanecem. O que serão dos próximos cinquenta anos do Xingu? E por fim, como a presidente Dilma Rousseff quer ser lembrada?
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