Em qualquer arte narrativa: seja a literatura, cinema, teatro, história em quadrinhos, ou video-game, o contraste criado pela diferença entre duas diferentes personalidades sempre gera um fruto proveitoso para o enredo. Nestas narrativas que combinam personagens de mundos totalmente opostos, unidas por algum fator externo, ocorre o supra-sumo do poder da dramaturgia: o conflito.
A arte narrativa é naturalmente dialética e possui alguns temas recorrentes. Estes temas são as bases estruturais onde o ficcionista constrói seus edifícios. O cineasta espanhol, Luiz Buñuel, por exemplo, versava muito sobre o tema “Amor em fuga”, que ele definia da seguinte maneira:
 “O amor louco isola os amantes, faz com que ignorem suas obrigações sociais normais, quebra laços familiares comuns, e finalmente leva-os à destruição. Este amor assusta a sociedade, choca-a profundamente. E a sociedade usa todos os meios ao seu alcance para separar estes amantes como o faria a dois cães de rua”.
O “amor louco” ou “amor em fuga” é uma base estrutural da criação de estórias nomeada por Buñuel, mas que já existia antes dele. Esta base esteve presente em inúmeros filmes, clássicos ou modernos. O amor é o laço que faz com que a dupla de protagonistas percorra toda a estória unidos, ou tentando se unir. Mas existe outro tipo de laço entre personagens, que os mantém unidos por outros motivos. Esse laço pode ser a amizade, ou algum tipo de grilhão, real ou psicológico que mantenha os personagens unidos por toda a estória, mesmo que alguns em casos o que eles realmente queiram seja se separar.
“Dupla improvável” é um termo que cunhei (em julho de 2009) para designar personagens muito diferentes entre si, mas que por algum motivo inerente à estória, desenvolvem uma espécie de cumplicidade, ou amizade, e são obrigados ou conduzidos a conviver juntos durante a narrativa. Geralmente, personagens tão diferentes, com tantas disparidades, que só ficariam juntos se fossem obrigados, ou se houvesse uma necessidade externa muito forte, ou se por acaso descobrissem alguma afinidade dentre tantas diferenças. Observando todo tipo de filmes, pude perceber que esta “técnica de escrita” está presente em algumas das melhores estórias que conheço.
Via de regra, nas duplas improváveis surge uma espécie de amizade fadada ao fracasso. Isso acontece geralmente porque os personagens, pertencentes a mundos tão diferentes, nunca conseguirão manter uma amizade fora de um contexto muito específico.
A amizade entre um adulto e uma criança é o exemplo clássico e possivelmente o mais utilizado, de duplas improváveis. Por algum motivo, eles podem se tornar bons amigos, mas tudo no mundo levará a amizade a se extinguir. A criança terá seus interesses e obrigações infantis, enquanto o adulto terá que arcar com suas responsabilidades e deveres da maioridade. Vários filmes versam sobre este tema e há mais de um exemplo em que a amizade ocorre entre um adulto com deficiência mental, por exemplo, e uma criança. Suas mentalidades são tão próximas, mas há uma diferença física brutal. A sociedade não pode suportar esta amizade, tão perto, tão longe.
Win Wenders foi sábio, em Asas do Desejo, ao utilizar um anjo caído no caminho de um anjo que desejava conhecer o mundo. Uma amizade separada pelo fino e quase-inquebrantável tecido da existência física. Durante o filme, os personagens percorrem momentos juntos, o anjo caído não é capaz de enxergar o amigo, mas sabe que ele está ali, e a dialética entre os dois reforça ambos personagens. E os dois saboreiam a existência juntos, cada um a sua maneira.
Em todo filme sobre duplas improváveis há o derradeiro momento em que o fio de afinidade que uniu as duas vidas corre o risco de se romper para sempre, e na maioria das vezes é isso o que acontece. Filmes sobre duplas improváveis costumam falar também sobre a existência da pureza, e sobre como a sociedade pode ser incapaz de enxergá-la, ou sobre a verdadeira e profunda fraternidade que pode acontecer entre dois seres humanos, sem nenhuma ambição, modificando no processo, a vida de seus protagonistas e possivelmente de pessoas próximas a eles.
Além de crianças, existem duplas improváveis de pessoas com animais, pessoas com extra-terrestres, pessoa tímida com pessoa popular em uma escola norte-americana (mil filmes americanos sobre esta temática), pessoas frágeis e monstros colossais, e pode-se imaginar centenas de estórias construídas sobre esta arquitetura.
Na publicidade, a “dupla improvável” também existe. Um comercial realizado na divisa entre Israel e Palestina, no qual soldados de ambos os lados jogam futebol, por cima do muro. Os oponentes não se vêem através do muro, mas se divertem, chutam e recebem a bola. Aliás, o futebol é um exemplo clássico da possibilidade de amistosidade entre oponentes. No Haiti, uma campanha do exército brasileiro para promover a união entre grupos rivais, envolvia o jogo de futebol entre os inimigos. A guerra civil do país contava com grupos de extermínio, e após a chegada das forças armadas brasileiras, os rivais jogaram bola unidos por um objetivo comum, e desse atrito, uma espécie de camaradagem surgiu. No início os jogos foram violentos, mas no fim de cada jogo, os rivais eram obrigados a cumprimentar com um aperto de mão o time inimigo.
Se existem dois humanos e uma situação propícia, a comunicação ocorrerá, e se de alguma forma um laço brotar entre os dois, surgirá possivelmente a amizade, extrapolando as barreiras racionais, as distâncias, os medos e os preconceitos. Então a amizade que floresce das duplas improváveis é uma amizade pura, singela, e facilmente quebrantável por conta das adversidades a que está sujeita.
No cinema, Clint Eastwood versou sobre este tema com o filme “Um mundo perfeito”. Este filme é um drama comovente sobre a amizade entre um sequestrador, foragido da cadeia, e sua vítima, um menino de oito anos que ele sequestra como garantia para escapar. Na viagem pelas estradas americanas, Kevin Costner (Butch) acaba fazendo o papel da figura paterna em falta na vida do garoto (Phillip). A amizade é construída, cena a cena, cuidadosamente.
Inicialmente, Phillip não tem escolha, precisa viajar com o criminoso, até o momento em que tem a chance de decidir se vai ficar com o novo amigo criminoso, ou se vai embora de volta para casa. Phillip decide ir com o amigo criminoso, porque com ele, é possível fazer coisas que a mãe não permitiria. Quando a polícia encontra Butch, Phillip não quer se separar dele, mas é obrigado, por forças maiores. A amizade nunca duraria.

No filme, “O profissional”, de Luc Besson, um assassino profissional salva a vida de uma garota de 11 anos. A familia dela esta morta e ele passa a cuidar da garota, apesar de relutante. Como criminoso, assassino profissional, a relação do personagem Léon (jean Reno) e Mathilda (Natalie Portman) é a mais distante de todas, no entanto, por uma série de fatos encadeados, eles estão juntos e precisam aprender a conviver enquanto a relação for capaz de durar.
Na famosa série de TV, “Dexter”, o protagonista é um assassino serial. Um personagem com essa característica é averso a qualquer tipo de envolvimento humano, essa é sua principal característica, afinal, Dexter mata, por prazer, ele nem sequer pode se considerar humano. No entanto, para sobreviver sem ser pego, ele precisa forjar para si uma personalidade comum, com um emprego, com relacionamentos. No decorrer da estória Dexter é obrigado a conviver com uma série de pessoas, e é obrigado a criar laços. Tudo vai contra a sua natureza, e a tendência dele é evitar pessoas, mas chega um momento em que os laços tornam-se importantes, e ganham corpus. os relacionamentos forjados de Dexter acabam ganhando uma essência verdadeira e uma importância na vida dele, causando uma contradição entre a sua essência assassina, e algo muito parecido com a capacidade de sentir afeto, que ainda existe dentro dele. Por isso, quase todos personagens que permeiam as temporadas de Dexter, são duplas improváveis.
A dupla improvável do diretor de cinema italiano, Vittorio de Sica, está entre as mais queridas de todo o cinema. Humberto D. é um homem pobre e velho em Roma, desesperado, tentando manter seu quarto. A proprietária quer expulsá-lo e o melhor amigo que ele tem é o cachorrinho carismático, Filke. Este filme está entre os melhores filmes já realizados, de todos os tempos, de Sica era genial. Um cão e um homem velho, porque andariam juntos? Que dupla mais fora do convencional? No entanto esta dupla tem uma faísca, vivem juntos porque sentem afinidade. O centro da trama aqui também gira em torno da impossibilidade da dupla de permanecerem como amigos. Mas não porque a sociedade impeça essa amizade, o motivo é outro. Entregue ao desespero, Humberto D. quer se matar, mas para fazer isso, ele precisa que Filke vá embora. E para nós espectadores, é triste saber que essa dupla se separará por conta de um momento de fraqueza de Humberto D. . Mais detalhes do que isso, estragaria a estória para quem não viu.
O escritor Jack London também escreveu sobre duplas improváveis entre homens e cães. Um de seus melhores contos fala sobre um homem e um cão. Neste caso, eles não são amigos, são inimigos e se odeiam com toda a força que podem, no entanto, por algum motivo, vivem juntos, “dupla improvável” semelhante ao cartoon, Tom & Jerry. O cão se chama Batard. O ódio entre os dois é tão grande, que para dormir, precisam manter os olhos abertos. É como se estivessem aguardando um momento propício para atacarem o maior oponente de suas vidas. O conto Batard foge do tema amizade e pureza, e leva o tema para o outro oposto, o ódio mais sincero de todos, e a inimizade brutal. O desfecho da estória é impressionante, também pudera, dado o talento brutal de London na literatura. O conto Batard extrapola a amizade e quebra os limites das possibilidades dramáticas das duplas improváveis na narrativa. A afinidade movida pelo ódio é apenas um exemplo que demonstra como podem ser infinitas e ricas as estórias baseadas em duplas improváveis.
“Inimigo Meu” é uma ficção científica sobre Davidge, um soldado da terra, e o alienígena Jeriba. Os inimigos de uma guerra espacial se vêm perdidos em um planeta deserto. Por questões de sobrevivência, eles são obrigados a deixar as diferenças de lado. Apesar de alguns absurdos típicos de filme B, a estória cravou na cabeça da geração dos anos 80 devido a essa dualidade tão bizarra se tornando uma amizade ainda mais estranha, entre homem e alienígena.
Quando ainda estudava cinema, o diretor russo Tarkovsky, realizou “O rolo compressor e o violinista”. Um filme singelo e inesquecível, sobre Sasha, um garoto de 10 anos, tocador de violino. Seus coleguinhas insistem em humilha-lo todos os dias por ele ser um “músico”. Um crítico definiu bem este personagem “E dai a concepção do artista como um pária, um ser em descompasso com a realidade”. Sergei é o operador de um rolo compressor, que defende Sasha das garras dos meninos. Surge desse instante uma amizade onde ambos vão se transformar. Os dois passeiam juntos durante o período de uma tarde, um trabalhador braçal, e uma criança com seu violino. A ligação/oposição ai está não somente entre os personagens, mas no que representam: o trabalhador braçal operador de um truculento rolo compressor versus o frágil violonista mirim, que preocupa-se até em encontrar o melhor ponto para que sua música ecoe. Este filme marca uma época em que havia verdadeira mágica no cinema, algo tão poderoso que serviria para inspirar gerações e gerações de outros artistas. A amizade não poderia durar mais do que uma tarde, e logo, Sacha é chamado pela sua mãe, e Sergei tem um compromisso com uma garota. As duplas improváveis são feitas, na maioria das vezes, para durarem instantes.
Homens e ratos, é outro exemplo, na literatura, do tema da dupla improvável versando sobre truculência versus fragilidade. Lennie é um grandalhão estúpido e seu amigo mirrado George viaja com ele. George é quem toma as decisões e ensina Lennie como agir da maneira correta, é a cabeça pensante da dupla. - Isso me lembra dos personagens guerreiros, em Mad Max Além da cúpula do trovão - O que leva duas pessoas tão diferentes a andarem juntos? Eles precisam um do outro? George pensa várias vezes que seria mais feliz se andasse sozinho, sem Lennie. Mas Lennie nunca questiona a amizade. Há uma ligação entre os dois, difícil de explicar, e talvez essa não-explicação seja o motivo dessa estória ser tão universal e tão bem sucedida na literatura. A dupla improvável vai além das aparências, além até das afinidades e das escolhas pessoais e das vantagens que cada um poderia tirar. Muitas vezes as duplas acabam por se atrapalhar, pelo simples fato de andarem juntos.
Nos video-games existem dezenas de duplas improváveis: The three vikings, Sam & Max e de uns anos para cá o nível artístico dos jogos eletrônicos encontrou um estágio muito elevado, ao ponto de quebrar o preconceito de alguns em admitir o video game como arte. A empresa japonesa Team Ico, possui uma trilogia de pérolas nesse sentido. São Ico, Shadow of The Colossus e The Last Guardian. No primeiro jogo, Ico, lançado em setembro 2001, o protagonista é um garoto que nasceu com chifres. Isso é considerado mau presságio em sua aldeia, e por isso aprisionam Ico em uma fortaleza abandoada. Após escapar de sua jaula, Ico descobre a princesa Yorda, a filha da rainha do castelo. A rainha planeja usar Yorda para estender seu tempo de vida. Os protagonistas são esse garotinho mirrado, que se defende com um pedaço de madeira, e uma princesa muda e translúcida, quase fantasmagórica. Ico tem a obrigação de proteger a princesa dos espíritos malignos que estão por toda a fortaleza e juntos percorrem o castelo em busca de uma saída. Ico não atingiu o sucesso comercial do irmão do meio da trilogia, Shadow of The Colossus, lançado em outubro de 2005. Wander é um jovem viajando por um vasto território afim de ressuscitar sua amada, Mono. Para isso ele precisará derrotar dezesseis criaturas gigantescas conhecidas como “Colossos”. A dupla improvável do jogo são Wander e seu cavalo. A interação entre os dois é espetacular, e um dos elementos a que o jogo pode atribuir seu sucesso. A Team Ico percebeu que as narrativas não precisam de uma quantidade exagerada de elementos, a narrativa pode se basear no minimalismo de duas personagens distintas atuando juntas e que uma estória pode ser construída apenas ao redor dessa dualidade formando a unidade, mesmo que temporária.
Em termos mundanos, penso na dupla improvável como uma característica de todos os dias. Em uma faculdade, por exemplo. O que liga todas as pessoas daquele ambiente é o fato de pertencerem ao mesmo ambiente de estudos, mas observe com mais cuidado e verá diferenças gritantes entre as pessoas. O nerd da primeira fileira, o revoltado do fundo da sala, o esportista, a estereotipação na qual muitos jovens buscam para se afirmarem como indivíduos. Os estereótipos determinam: você pode se aproximar de pessoas parecidas com você, mas com pessoas diferentes não. Mas somos todos feitos de carne e pensamentos, e quando dois “estereótipos” são convidados pela professora para realizar uma tarefa juntos, e são obrigados a passar duas horas estudando dentro de uma biblioteca de faculdade, talvez ai o metaleiro sombrio e o riquinho popular descubram afinidades entre si, e talvez durante duas horas haverá se formado uma genuína amizade. Quando o trabalho acabar, o mais provável é que cada um volte para o grupo onde se sinta acolhido e à vontade, e aquela amizade acabou. Mas o desrespeito, o medo do desconhecido acabou. Resta uma admiração por todas as diferenças daquele outro ser humano.
Back to Top