A Guerra Fria afetou a indústria cinematográfica americana de forma brutal. Foi um período de intensas perseguições a talentos ligados ao pensamento comunista, mas também foi marcado por extrema criatividade. Das cinzas brotava o Cinema Noir, outro tipo de cinema em ascensão retratava o medo da catástrofe nuclear através de metáforas ou mensagens diretas. Após este período o cinema nunca foi o mesmo.
“Vida fora de equilibrio... um estado de vida que clama por outra forma de viver”, esta é a tradução para a palavra ‘Koyaanisqatsi’, falada pelos Hopis, etnia indígena preservada até hoje no nordeste dos EUA. A palavra denomina o documentário (parte da trilogia Qatsi) dirigido por Godfrey Reggio, entremeado pelo poder da música minimalista de Philip Glass. Sem falas, o filme nos leva a um passeio pela natureza e por paisagens urbanas, evocando aos poucos o poderio bélico americano, como se aguardasse para ser utilizado: Milhares de tanques estacionados em fileiras gigantescas, testes atômicos, usinas nucleares e cidades. Algumas destruídas, outras respirando com vivacidade, como se aguardassem por um bombardeio a qualquer momento. O documentário Koyaanisqatsi resume a tensa atmosfera e a necessidade de mudança de uma época marcada pelo medo nuclear e pela propaganda americana contra o comunismo soviético quando o assunto era Guerra Fria.
Com o fim da segunda guerra mundial, Estados Unidos e União Soviética disputavam a supremacia mundial através de conflitos ideológicos e políticos. A Guerra Fria foi uma guerra subentendida - “se você atacar, eu ataco”, - entre duas nações com propostas de mundo divergentes. De um lado os EUA e países aliados, representantes do ‘primeiro mundo’, na defesa do modelo capitalista. Do outro lado estavam os países de ‘segundo mundo’, liderados pela União Soviética comunista, e por último, o ‘terceiro mundo’ subdesenvolvido, do qual o Brasil fez parte. (Vale lembrar que essa categorização foi muito questionada por historiadores, sociólogos e formadores de opinião). Viver no mundo pós-guerra significava estar em meio aos destroços ansiando por reconstrução e ser obrigado a escolher de qual lado você gostaria de viver; os comunistas ou os capitalistas?
Nesse contexto, o cinema sentiu o dissabor do pessimismo, efeito não necessariamente negativo para a qualidade das obras produzidas. Pelo contrário, a criação cinematográfica vivenciou uma época ímpar. Na Itália por exemplo, o pessimismo pós-guerra nos presenteou com o triste, mas inesquecível, Alemanha, ano zero, (1947) de Roberto Rossellini. O filme foi o último, da trilogia da guerra, ao lado de Roma, cidade aberta (1945) e Paisá (1946). Nos Estados Unidos o movimento do cinema Noir (cinema negro) teve seu auge durante as décadas de 1940 e 1950, um dos movimentos mais influentes da indústria cinematográfica. Caracterizado pelas cenas escuras, cheias de mistério e sombras. O cinema noir versava sobre temas de crime, violência e decadência moral. Surgiu a figura da femme fatale, a mulher poderosa que se utiliza da sedução para conseguir o que quer. Figura controversa para o movimento feminista, movimento social ascendente a partir de 1960. Apesar de desprezado pela crítica da época, o cinema Noir influenciou gerações seguintes de cineastas.
O filme Noir costuma ser violentamente fatalista, seus protagonistas, de forma geral, tentam escapar de um passado sujo. Por mais que se esforcem, estão sempre prestes a encontrar o destino cruel. O tom cínico adotado pelos realizadores de filmes Noir foi resumido pelo roteirista e diretor, Abraham Polonsky, nesta declaração compilada pelo livro Film Noir: “Foi uma guerra extraordinária, horrível. Campos de concentração, massacres, bombas atômicas, pessoas mortas por razão nenhuma. Isto pode tornar qualquer pessoa um pouco pessimista”. Polonsky foi o filho mais velho de uma família de Russos/Judeus imigrantes, os ideais socialistas do pai influenciaram a ideologia marxista de Polonsky e sua posterior filiação ao Partido Comunista Americano.
Parte do medo incitado pela propaganda anti-comunista da guerra fria, era o medo anti- espionagem. Qualquer um que defendesse ideias esquerdistas era considerado imediatamente suspeito de espionagem. A pergunta central era: “Você é membro do partido comunista?”. Foi criada a ‘lista negra de hollywood’, com o objetivo de boicotar músicos, diretores, atores e roteiristas simpatizantes do comunismo. Abraham Polonsky foi um dos nomes listados, ao lado de personalidades como: Charles Chaplin e Luiz Buñuel.
O pivô da cruzada anti-comunista nos EUA foi o político americano Joseph Raymond McCarthy, senador do estado de Wisconsin entre 1947 e 1957. Em 1950 McCarthy entregou uma lista com os nomes de 205 pessoas supostamente envolvidas no Partido Comunista que trabalhavam no Departamento de Estado dos EUA. O medo da espionagem comunista alavancou a carreira política do até então desconhecido McCarthy. Em resposta imediata à lista entregue por McCarthy, os norte-americanos iniciaram uma “caça as bruxas”, período também conhecido pela alcunha de ‘Macartismo’. O ‘Comitê de investigação de Atividades Anti-Americanas’ iniciou uma investigação da indústria cinematográfica apontando ‘os dez de hollywood’, como supostos praticantes de propaganda à União Soviética. A exacerbada patrulha anticomunista, que caracterizam o Macartismo, destruiu a carreiras de muitos profissionais do cinema, alguns entraram em depressão e cometeram suicídio, como foi caso do ator Philip Loeb, retirado de uma carreira em ascensão por acusações da patrulha anti-comunista. Na década seguinte o Macartismo acabou desacreditado e a lista negra caiu no ridículo, após anos contínuos de abuso aos direitos constitucionais. McCarthy morreu no ostracismo político.
No década de 1960, tabus eram quebrados, mas a Guerra Fria perdurava assim como a ameaça de uma hecatombe nuclear. Os filmes B americanos perderam espaço nas produtoras americanas, mas ainda traziam em sua ingenuidade a verdade cristalizada em pérolas oníricas: Mutações, aranhas e pessoas gigantes ou diminuídas pela radioatividade. No Japão, a cristalização do medo nuclear se transformou no monstro gigante, Godzilla (Gojira). Uma ficção científica sobre um largarto verde de centenas de metros de altura nascido a partir de testes nucleares no atol de bikini. O monstro atacava o Japão destruindo cidades com seu bafo radioativo. Se você quisesse vender filmes nos Estados Unidos, não se podia mencionar diretamente os estragos causados pela bomba atômica, mas sempre foi possível falar através de metáforas. De volta aos EUA, George Romero atacou com A noite dos mortos vivos (1968), em que uma praga de zumbis infesta a cidade, e o protagonista tenta sobreviver no que resta de uma pequena casa (um protagonista negro em plena ascensão do partido Negro Revolucionário estadunidense, também conhecido como Os Panteras Negras). Ainda no Japão, anos antes, Akira Kurosawa narra a história “A anatomia do medo” (1955), sobre um empresário obcecado com a idéia de que o país não é seguro, e de que só há um lugar pacífico e livre de riscos o suficiente para não sofrer com as ameaças nucleares, um país da América do Sul chamado Brasil.
A Rússia e outros países como Letônia, Estônia e Lituânia se declararam independentes da União Soviética dissolvendo a nação comunista. Com o colapso da União Soviética a guerra fria chegou ao fim.
Os talentos do mundo vermelho surgem para o mundo ocidental, rompendo barreiras e renovando a arte. Nikita Mikhalkov e Andrei Tarkovsky são alguns dos artistas que representam a produção da extinta União Soviética. Tarkovsky, decididamente desvinculado do cinema comercial,e autor de alguns filmes que figuram hoje entre algumas das mais importantes realizações cinematográficas do mundo.
Em declaração para um documentário de TV, Tarkovsky declara sua concepção de arte que aproxima os artistas do oriente ao ocidente. Divididos por um oceano e por uma visão de mundo - ‘tão longe, tão perto’ - os artistas tem uma razão única para existir: “O artista existe porque o mundo não é perfeito. A arte seria inútil se o mundo fosse perfeito. O homem não buscaria por harmonia, simplesmente viveria nela. A arte nasceu de um mundo doente”, disse Tarkovsky mencionando os tempos em que viveu.
Parte da criatividade cinematográfica do período da Guerra Fria se deve a criatividade dos políticos do mesmo período. Poucos sabem, mas o conceito de Guerra nas Estrelas nasceu antes mesmo do filme homônimo de George Lucas. A corrida armamentista, somada à corrida espacial, criaram ainda durante o governo de Richard Nixon, o desejo de implantar uma guerra ocorrendo através de rotas espaciais. Mas foi preciso que um membro a indústria cinematográfica de Hollywood se tornasse presidente para quebrar a política de boa vizinhança com a União Soviética e reativar a velha proposta de Guerra nas Estrelas. O autor da proposta de ficção científica foi o ex-ator de cinema Ronald Reagan.
O diretor de cinema George Lucas trabalhava na produção de Apocalypse Now (1979), o famoso clássico de Francis Ford Coppola. No livro “The Making of Star Wars”, George Lucas explica como preferiu iniciar seu projeto pessoal ao invés de permanecer trabalhando no projeto de Coppola: “Boa parte do meu interesse em Apocalypse Now foi carregado para o Guerra nas Estrelas. Eu essencialmente lidei com alguns dos mesmos interessantes conceitos e os converti em fantasia espacial. Então você tem um amplo e tecnológico império perseguindo um pequeno grupo de seres humanos lutadores pela liberdade. O império é como a América, dez anos depois de agora. Após os mafiosos nixonianos matarem o imperador e elevarem-se ao poder através de eleições fraudulentas. Foi criada desordem civil, instigando protestos raciais, grupos rebeldes e permitindo que a criminalidade aumentasse até o ponto em que o total controle da polícia se tornasse bem vindo. Ai então as pessoas poderiam ser exploradas”, conclui George Lucas.
Definitivamente, a Guerra Fria foi um período único para a história do mundo, como fonte de matéria prima para as mentes criativas e ao menos naquele momento de brutais convulsões na esfera política e social, respondeu à questão: A vida imita a arte, ou a arte imita a vida? A segunda opção, neste caso.